A “crise” na universidade americana

“Americans Have Lost Faith in College”, diz o Wall Street Journal, num artigo que recompensa a leitura. Mas que pode dar algumas impressões falsas para quem não conhece o contexto.

1 – Realmente algo aconteceu com escolas no mundo inteiro após a pandemia. Caiu o mito de que é necessário estar presente para receber as informações do professor dono do conhecimento. Isso tem a enorme vantagem de que podemos assistir e ministrar aulas à distância quando, por exemplo, questões de saúde impedem o deslocamento. Mas também cria desconfiança. O fato é que as instituições de ensino se comportaram de maneiras distintas em tempos recentes – algumas fizeram o melhor possível, outras… a discutir.

2 – O acesso ao ensino superior nos EUA era muito maior que nos outros países ricos. A partir de 2000 foi alcançado e até superado pelo Canadá, Israel, países europeus, e asiáticos. A porcentagem de americanos que fazem universidades parou de subir. Isso fica visível no gráfico linkado, que mostra anos de escolaridade de homens jovens. A bola verde maior no canto superior direito é os EUA. Mostrei em função da renda do país que contextualiza e facilita a leitura, outros gráficos são fáceis de obter no mesmo site e mostram a mesma coisa. Dá para rodar ao longo do tempo e conferir a mudança. Essa saturação do acesso ao ensino universitário é um problema para o esquema de pirâmide da pós graduação, que considera um aumento contínuo do número de estudantes. Mas será que é uma crise mesmo? A fração de estudantes universitários na população encontra um limite, não sei se é 50% ou 100%. Nos EUA é maior porque as universidades americanas são atraentes para estrangeiros. Mas duvido que muito mais da metade dos jovens vão se dispor a fazer faculdade. 

Gráfico do Gapminder

3 – Verdade que existe inércia nas universidades americanas, mais nas humanidades que nas ciências. Não se compara ao quase reacionarismo da universidade brasileira, com as grades que demoram anos para se deixarem modificar, e as disciplinas que persistem como obrigatórias por décadas após a aposentadoria do último interessado. E é parte da missão da universidade conservar o conhecimento, não só produzir novidades e menos ainda seguir as modas. A maioria dos países são mais recentes que suas universidade mais antigas (o Brasil é exceção); decerto as universidades continuarão existindo depois que os países virarem história. Então se saiu de moda azar de quem não quer aprender.

4 – A universidade americana passa por uma burocratização e inflação administrativa que tornam a universidade mais chata e mais cara. Muito do aumento dos custos não acadêmicos é por boas razões: apoiar discentes mais diversos, em vez de deixar quem tem alguma necessidade extra naufragar. Uma grande parte é ocupação de espaços por grupos de poder sem muita credencial acadêmica, em geral se apropriando de discursos economicistas de direita, ou de discursos progressistas. Isso aumenta as despesas e deixa menos $ para pagar professores. A proliferação de professores temporários é parte desse processo. Mas, a ideia de que as notas aumentaram porque professores precários facilitam para receber boas avaliações estudantis é disparate.

5 – O apoio público para o ensino superior caiu muito. Em parte é muquiranice em pagar impostos, em parte é uma guerra ideológica contra o conhecimento – a diferença entra a direita dos anos 1980 e a extrema-direita de agora. Os preços nominais subiram muito. Mas quem paga o preço nominal é quem tem condições de pagar. Quem tem menos recursos recebe toda a forma de apoio. Nas universidades realmente “elitistas” – aquelas que ocupam o maior espaço na mídia – ninguém hoje paga mais do que cabe confortavelmente no orçamento.

6 – O problema de estudantes que contraem dívidas e não se formam está concentrado nas poucas faculdades com fins lucrativos, que formam uma parte pequena do sistema universitário americano e de modo geral são cheias de salafrários. Nas universidades de elite, que a direita e a esquerda adoram criticar por motivos só aparentemente diferentes, e que a mídia repercute sem parar porque vende jornal, a evasão é mínima. Nos sistemas públicos estaduais que formam a maioria dos alunos, a evasão também é baixa – bem menor que na USP por exemplo. Falar do problema da dívida estudantil num artigo que tem “Ivy League” na 1a linha é malversação jornalística.

7 – O ensino médio e básico nos EUA tem problemas, que se mostram nos calouros – mas reclamar que os estudantes estão pouco preparados é mais antigo que Cambridge ou Coimbra.

8 – Um eletricista ou encanador pode ter uma carreira produtiva e um bom salário sem diploma de faculdade. Antigamente isso era um motivo de orgulho para um país que exaltava a classe média trabalhadora. Hoje aparentemente virou uma crítica ideológica à universidade. 

9 – Ensino técnico profissionalizante nos EUA é fraco em comparação com o da Europa Central. Isso é fato, comparando com Alemanha, Suíça, norte da Itália, Czechia, regiões com indústria muito forte. Não necessariamente sobre o resto da Europa. Não sei comparar com Japão, Taiwan, e Korea. No Brasil o ensino técnico é bom, mas muito restrito, e usado como ponte para a universidade, porque a sociedade valoriza o diploma como certificado de ascensão social mais do que o conhecimento.

10 – A briga política que apareceu no comentariado em meses recentes tem pouco a ver com esses processos todos, e tudo a ver com a instrumentalização da academia por forças exógenas de esquerda e de direita, com agenda ideológicas e pouco respeito pelo processo intelectual. O autor do artigo cobriu esses embates, não tenho energia para conferir com qual qualidade.

11 – O artigo apareceu no Wall Street Journal, e o autor parece competente. Mas, dá para cheirar os vazamentos na “Muralha Chinesa” que isolaria o excelente jornal diário do sistema podre de editoriais que são o que sustentam a publicação. Mesmo num bom artigo é necessário estar atento para o viés.

12 – Para fechar identificando o viés: a competição pela oportunidade de pagar $300 mil por 4 anos de escola mostra que o produto das universidades americanas tem boa aceitação no mercado. O artigo segue um pouco na linha do Yogi Berra: “É tão cheio que ninguém mais vai.” Num jornal de negócios, o autor deveria ter identificado a contradição entre as críticas e o sucesso do negócio do ensino superior. Mas a ideologia anti-ciência dos editoriais que controlam o jornal vaza para as reportagens, apesar dos melhores esforços.

A artigo do WSJ está em https://www.wsj.com/us-news/education/why-americans-have-lost-faith-in-the-value-of-college-b6b635f2?reflink=desktopwebshare_permalink

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